A POESIA ESTÁ VIVA, MAS JURO QUE NÃO FUI EU
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“Pesa em teu sangue a voz de ignoradas origens.
(…)
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A primeira inscrição em baixo-relevo
foi uma chicotada no lombo.”
Raul Bopp[1]
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“A poesia existe nos fatos.”
Oswald de Andrade[2]
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“A poesia é perdurável
quando é obra de todos.”
José Martí[3]
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“É preciso caminhar
na escuridão e se encontrar
com o coração do homem,
com os olhos da mulher,
com os desconhecidos das ruas,
dos que a certa hora crepuscular
ou em plena noite estrelada
precisam nem que seja
de um único verso…”
Pablo Neruda[4]
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“Todo poema é, por princípio, um veneno antimonotonia.”
Eucanaã Ferraz[5]
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“Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos dos tempos inquietos,
promessas que o mundo sopra.”
Cecília Meireles[6]
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O tempo é muito curto para a poesia!
Ou, no mínimo, a poesia tem tirado férias. Não, não se trata do fatalismo que, na barbárie destes dias, se anuncia através das ondas da televisão em programas pseudojornalísticos, nas manchetes de jornais e revistas, nos cartazes fascistas em manifestações de rua, nas redes sociais. Não porque a barbárie também é matéria de poesia. E é tarefa do poeta ousar torneá-la no correr das horas de seu tempo – que é o único que terá.
Em 1924, Oswald de Andrade já alertava que, em matéria de poesia, “contra o gabinetismo, a prática culta da vida”[7]. Esta afirmação, que valeria também para a produção das ciências, da economia, da política, continua válida. É certo que a própria produção das saletas com pompa de olimpo caiu em qualidade nos últimos anos e não importa se pela perda do rigor, pela dispersão, pela superficialidade ou por simples caprichos da organização do Capital e seus subordinados. Seja lá pelo que for tais cubículos dos oráculos permanece estéril. E não, não se trata de uma manifestação leviana contra todos os trabalhos e dedicações acadêmicas.
Ocorre que a vida, essa coisa cotidiana e rotineira, essa tendência ao tédio e ao pragmatismo, essa contradição materializada em existência humana, ainda é a única matéria de onde pode ser extraída aquilo a que chamamos poesia. E muito provavelmente será a única.
Contudo, o tempo é pequeno para a poesia. É apertado, pois continuamos divididos e, como diria Carlos Drummond, nossos braços caminham sem mãos e executam obsenos gestos avulsos[8]. Afinal de contas, somos herdeiros de escombros sobre os quais arautos proclamaram o fim da História, do neoliberalismo, do individualismo levado ao seu ápice. Em tese, tal fim é o fim da humanidade. O fim da humanidade dá as mãos ao fim da poesia.
Minha geração, educada segundo tal evangelho, sente-se um pouco órfã do futuro, pois neste presente nebuloso e tacanho tentamos colar as peças de nosso passado, alicerce sobre o qual edificaremos nossos projetos. E que futuro é esse sem a possibilidade da poesia?
Mas se a poesia estiver morta, juro que não fui eu[9].
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Escombros, esgotos, heranças
Como indivíduos, carregamos conosco 23 pares de cromossomos que delineiam nossa arquitetura biológica. Brasileiros, vestimos as cores das matrizes culturais que nos formaram e todas as outras que aqui vieram se refugiar ou angariar lucros. Somos um processo de povo que suporta as cicatrizes do genocídio, do estupro, da tortura, da escravidão – muitas vezes, infelizmente, as disfarçando sob máscaras, amnésias e alienações das mais diversas. Terra revolvida pela cruz, pela espada, pela chibata e pelas misérias.
A perspectiva de romper com esse ciclo de esfacelamentos pisa um pântano de escombros, de estrelas cadentes e profetas do apocalipse – afora a fauna vasta que anseia carcome-la uma vez por todas. A possibilidade de rompimento depende de conhecermos e reconhecermos nossa história, de nos afirmarmos brasileiros e, simultaneamente, irmos “contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra”[10].
Cabe-nos resgatar os veios, os seixos e fissuras do soerguimento dos Andes que modelou esta América e nossa terra. Investigar nossos 40 mil anos de história não contada, desde as primeiras comunidades humanas a se fixar em Pindorama, antes, muito antes da primeira nau. Espraiar entre nós uma identidade cultural de características populares. Não como folclore, mas fator constitutivo e irrevogável, maior que o simples resgate de nossas matrizes de formação.
Maior que a tarefa dos bandeirantes de desbravar o oeste e colonizar esta terra, conhecendo e expropriando as riquezas e as vidas que encontrassem pela frente, cabe-nos desenterrar os vestígios daquilo que somos. Cabe-nos redesenhar e reativar Peabiru, transpor as fronteiras, os planaltos, cordilheiras e a língua que nos divorcia dos demais países latinoamericanos.
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Delírio, unha encravada ou hemorroidas?
A poesia, em tese, não tem lado. O poeta, contudo, mesmo que não queira ou negue ferrenhamente entre hipérboles e rimas, as assume. Até porque, ao que parece a poesia não nasce da indiferença pela vida.
É fato que ninguém deixa de contratar um pedreiro porque este vota em algum candidato de origem libanesa, com grande capacidade de escapar de órgãos policiais e profeta de rotas corretas para as ruas. Nem mesmo de tomar um ônibus caso descubra que o motorista é assumidamente de direita. Ou, no mínimo, não há muito cabimento em fazê-lo, pois o fruto do trabalho delas não expressa, necessariamente, suas concepções de mundo. Espera-se de um pedreiro que faça bons serviços de alvenaria; de um cozinheiro, que cozinhe bem; de uma motorista, que dirija corretamente e com segurança. Contudo, como apesar de o trabalho organizar a vida humana, nem tudo na vida é trabalho, as concepções de mundo de uma pessoa interferem diretamente no modo como tal se relaciona com seu trabalho, com o produto deste, bem como nas suas relações de vida.
Assim, há poetas reacionários, como Fernando Pessoa, autores de poemas memoráveis e poetas revolucionários ou progressistas cujos versos são de qualidade duvidosa. Contudo, em ambos os casos, aparecem aspectos de sua ideologia na construção dos textos.
O poeta, pois, ao reivindicar um projeto de país, uma identidade cultural de cunho popular e defender uma realidade humana diferente, não está doente, nem se desviando da sua grande missão. Apenasmente anseia um mundo melhor, mais justo. Uma sociedade de iguais. Uma comunidade de irmãos e irmãs. Um mundo sem fronteiras. Um mundo sem classes sociais. Sonho este que é patrimônio dele e dos seus.
Neste sentido, de modo especial em períodos de maior polarização, não há como adotar uma postura de neutralidade – até porque, a neutralidade não existe. Desculpem-me todos os livres pensadores, mas é momento de tomar posição, é momento de tomar partido.
Em poesia esta luta também se trava, pois é hora de rever o modo de falar sobre a vida, o que falar da vida e para quem – não na perspectiva de excluir, mas de eleger prioridades e a estas ser coerente. Rever forma e conteúdo. Traçar uma proposta estética.
E não foi este ser que inventou a estreita ligação entre a poesia e a época à qual pertence.
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Tupi our not tupi this is the question[11]
Há pouco tempo para a poesia, pois trabalha-se muito e ganha-se pouco. Desperdiça-se muito tempo no transporte público. Programas da televisão, a internet e redes sociais dispersam a atenção, afluem um mar de informações. As publicações são restritas e em pouco volume. Os caminhos da poesia se estreitam, tanto para quem lê como para quem produz. A poesia gera pouco lucro, é renegada.
Mas ela é teimosa, debate-se e encontra brechas.
Daí, tanto faz onde aparece o poema: no livro, no papel de pão, na internet. Publicar em um blog, por exemplo, passa da simples e abstrata questão de “utilizar novas ferramentas”.
Os primeiros poemas produzidos na tradição greco-romana foram transmitidos de forma oral. Muitos cantos de povos africanos e ameríndios foram transmitidos da mesma forma. Os primeiros textos e poemas que vieram a compor o que chamamos de Bíblia foram registrados em pergaminhos, após longo período de transmissão oral. O tempo passou e começaram a produzir livros manuscritos. Depois veio a prensa. No século 20 vimos poemas serem registrados em LP’s, em CD’s, serem convertidos em arquivos MP3. Conquistaram a esfera virtual, alçaram os patamares do livro digital. E quer queiram, quer não, os poemas estão aí.
Logo, a questão não se centra em qual mídia é mais adequada para sua apresentação, qual substituirá aquela ou outra. O formato em que ele interagirá com o outro (leitor ou ouvinte) depende do patamar em que estão as forças produtivas daquele momento. Se uma sobrepujará ou não a outra, dependerá dos interesses que o Capital possui sobre estas, quais seus lucros. Porque, não nos iludamos, quem manda no mundo é o Capital (exceção feita a leis naturais que ele não domina, mas das quais tira proveito).
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Humana, apenasmente humana
Há quem diga que a poesia é um dom, que é uma inspiração que brota sabe-se lá de onde ou de quem. De experiência, sei que a perda do exercício diário de escrever e refletir sobre esta prática enferruja o cérebro, o léxico, as habilidades. Nos deixa quase que literalmente sem palavras, com as mãos desatadas.
A poesia não é uma entidade mística que nos penetra. É um sentimento humano desencadeado pelo jogo das palavras, das cores, das formas, das imagens, dos sons (que a poesia não habita monogamicamente com o poema); jogo este produzido por outro ser humano.
A capacidade de extrair poesia não é um dom particular, restrito, um privilégio. É a conjugação de uma herança genética talhada pelas condições culturais, sociais, políticas, históricas e ambientais às quais foi exposto o indivíduo – ao qual convencionou-se chamar poeta, lapidada pelo exercício da prática, pelo estudo da técnica, pela leitura constante, pela reflexão crítica e consciente sobre aquilo que faz e produz.
Lampejos momentâneos de possibilidades, aos quais dá-se o nome “inspiração”, são um micrômetro do processo.
Jogar a poesia no chão assusta alguns às vezes. Por isto, aqui, deu-se preferência a resgatá-la como herança, do seio de escombros e esgotos. O tempo é curto para a poesia, mas ela está viva.
Está viva porque a vida em si não basta.
[1] BOPP, Raul. Poesia completa. São Paulo: Edusp, 1998.
[2] ANDRADE, Oswald de. Manifesto da poesia pau-brasil. Correio da Manhã, 18 de março de 1924
[3] MARTÍ, José Julián. Versos sensillos. Porto Alegre: SBS, 1997. Tradução: Sidnei Shneider.
[4] NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. São Paulo: DIFEL, 1974. Tradução: Olga Savary.
[5] FERRAZ, Eucanaã. Veneno antimonotonia: os melhores poemas e canções contra o tédio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
[6] MEIRELES, Cecília. Romanceiro da inconfidência: crônica trovada da cidade de Sam Sebastiam. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
[7] ANDRADE, Oswald de. Manifesto da poesia pau-brasil. Correio da Manhã, 18 de março de 1924
[8] Trecho inspirado no poema Nosso tempo, de ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 36ª ed., 2006
[9] Frase inspirada no poema Acima de qualquer suspeita, de PAES, José Paulo. Melhores poemas. São Paulo: Global, 3ª ed., 2000
Parabéns pelo texto.
Li e gostei.
quantas vozes antes de mim
falam em minha voz
quantos rios de sangue
irrigam a impossível poesia
presa em nós
de todos ignoro a exata forma
a surpresa originária da mesma imensa foz
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Olá caro João,
Nesta manhã, após um longo período de silêncio, abro o blog para atualizá-lo, movido por razões tristes. Mas me alegro surpreso por sua mensagem.
Muito obrigado!
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Passaram-se 6 anos de versos na linha do tempo e com o passar deste tempo, pude ser agraciada pela paixão por leitura. Hoje, leio seus poemas com um orgulho descomunal por ter sido sua aluna!
Pelo pensamento crítico, pelo vocabulário, pelo constraste e ritmo, por sua garra de batalhar para ter vida e voz, proclamando suas linhas tênues e enchendo o mundo desta arte tão magnífica:escrita. Meus sinceros parabéns!
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Caracas Jonathan. Parabéns. O espaço aqui pra comentar não é nada mais do que para parabenizar né, chega a ser desconcertante a qualidade da sua escrita, o grau de percepção e a organização das suas idéias. Parabéns novamente.=]
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Renan,
É um prazer reencontrar na vida pessoas que marcaram nossa história.
Muito obrigado por seu comentário. E volte sempre.
Um forte abraço,
J.
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Parabéns meu amor, que venham mais e mais anos de seus poemas, de luta e de vida pulsante.
Te amo.
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Muito obrigado, meu amor, pelo apoio e incentivo! Me sinto mais forte.
Beijo,
J.
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